A Primeira Tentação de Cristo polemiza e enfurece a sociedade

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Todos programas televisivos que decidem seguir uma linha de polêmica ácida e crítica sabem que, mais dia menos dia, vão esbarrar na fúria de grupos conservadores e temas intocáveis. Já passaram por isso Simpsons, Family Guy (aliás, tudo feito pelo Seth McFarlane), South Park, Rick e Morty e agora é a vez da Porta dos Fundos, grupo brasileiro de humor que fez fama com vinhetas rápidas e virou expoente do novo humor brasileiro, sendo contratado pela Netflix para produção de material original. 

Se no ano passado, a trupe acertou em cheio ao fazer seu especial de natal “Se Beber Não Ceie”, na qual é parodiado o filme Se Beber Não Case e mostrando uma faceta menos adorada de Jesus, esse ano o foco foram os anos “perdidos” no deserto e a volta de Jesus para seu aniversário de trinta anos.

Obviamente a volta traz uma grande polêmica, que enfureceu a comunidade cristã. Além de boicotes e listas para retirar do ar o especial, os protestos acabaram culminando em um ato de terrorismo realizado às vésperas do Natal, quando foram atirados coquetéis molotov contra a sede da produtora da Porta dos Fundos no Rio de Janeiro. 

Interessante notar que sempre que a polêmica envolve religião, as reações tendem a ser mais explosivas, sem qualquer trocadilho. O pasquim satírico Charlie Hebdo na França sofreu um atentado à bomba por satirizar o profeta  Maomé em 2015.

Todos filmes que falam algo contra os dogmas católicos são firmemente combatidos. E agora o episódio com a Porta dos Fundos. Vale lembrar que o grupo sempre polemizou todas as religiões, sem predileções, como no curta Deus. Seja religiosamente ou politicamente, eles sempre fizeram questão de “causar”, com maior ou menor acerto.

O ocorrido lembra em muito quando South Park, que tinha Deus entre seus personagens recorrentes, resolveu fazer graça com a cientologia, um misto de ciência com religião popular entre os famosos dos Estados Unidos. Ao satirizar a cientologia, um dos dubladores originais, seguidor do culto, se indignou contra as piadas, e teve uma resposta muito correta dos criadores: “Ele nunca teve problema com a avacalhação da religião dos outros e agora resolveu ser puritano?”. O dublador acabou demitido, e a série, mais ácida. 

Sobre a peça em si, nada digno de grandes notas. Gosto é algo particular, e a apreciação por polêmicas e críticas também, mas enquanto produto audiovisual, a Primeira Tentação é pobre, vulgar, com poucos momentos engraçados, e nada memorável, devendo muito para seu antecessor.

As piadas tendem a ser de mau gosto sem trazer nenhuma originalidade ou nada que chame a atenção salvo a polêmica apelativa. E nesse momento é fundamental voltar ao início do texto e resgatar as referências, dignas de elogios: South Park, Simpsons, Family Guy e Rick e Morty. Polêmicas e críticas inteligentes e bem feitas são bem vindas. A apelação barata, não. 

Necessário contudo deixar claro que, por pior que seja uma obra, por mais que cause desagrado, repulsa ou repúdio, nada dá o direito de se cometer violências físicas ou verbais, muito menos atos de terrorismo contra quem produziu tais obras e, mais ainda, causando o risco de ferir muitos inocentes, mais até do que os responsáveis. Retrocessos dessa natureza empobrecem a vida em sociedade e colocam mordaça em vozes dissonantes.

Se não gosta da mensagem do filme, ninguém é obrigado a assistir, especialmente em uma plataforma de streaming com controles e algoritmos de busca. Momento importante para relembrar as imortais palavras de Voltaire: “Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo”.