A Voz Suprema do Blues apresenta racismo enraizado em excelente narrativa

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A Voz Suprema do Blues é uma adaptação de uma peça de teatro homônima que conta a história de Ma Rainey, cantora de blues da década de 30, interpretada por Viola Davis, em uma caracterização muito bem feita. Com a intensidade típica da atriz, que contracena a maior parte do tempo com o eterno Pantera Negra, Chadwick Boseman, em um filme intimista e claustrofóbico, mais uma prova de como a Netflix se reinventou e se fortaleceu no ramo dramático.

A Voz Suprema é intimista e claustrofóbica por diversas razões, que vão do cenário, basicamente um porão de uma casa ao número de atores que atuam, lembrando muito a estética, estilo narrativo e cadência de uma peça de teatro, honrando assim a mídia na qual se originou. Contudo, aos espectadores mais atentos, esse intimismo vai se desconstruindo como uma prisão, símbolo da opressão racial, que vai ficando claro ao longo da peça/filme, especialmente por conta de uma cena que se repete. Nessa cena Chadwick tenta, por vezes e sem sucesso, abrir uma porta que ficava no porão da casa. Simbolicamente essa ação conversa muito com o personagem de Chadwick, Levee Green, um músico que sonha – e ousa – querer ir além do que aquele papel que a sociedade havia destinado a ele.

Outro ponto que se destaca é a dialética que simboliza a luta dos negros nos Estados Unidos, que é o caminho da paz seguido pelo Dr. Martin Luther King em oposição aos movimentos de confrontação que tem na pessoa de Malcom X seu maior expoente. Essa diferença de caminhos acaba transparecendo justamente na interação dos personagens, em especial dos músicos, o que de forma inesperada acaba levando a um desfecho violento, quando a narrativa novamente apela ao simbolismo. Não á toa, o diretor do Filme é um experiente vencedor de prêmios Emmy, George C. Wolfe.

E justamente o cenário de atuação, o porão, no qual os músicos, todos negros, acessam por uma entrada por um beco, e não pela entrada principal, faz uma remissão aos tempos de escravidão, e a busca que Ma Reine tem de combater esse segregacionismo, presente de forma sutil em diversos momentos.

Em um desses momentos, a cantora faz com que o homem branco, na figura de seu agente e do dono da gravadora, faça sua vontade, inicialmente dando a impressão de um estrelismo típico de divas do entretenimento, sendo depois explicado por ela como uma forma de protesto. Ela sabe que seu poder e sua utilidade tem prazo para expirar após o homem branco pegar tudo que precisa, o que acontece exatamente ao final do filme, confirmando as suas previsões.

Essa narrativa condescendente, no um a um, lembra o livro de Alvarez de Azevedo, Noites na Taverna, na qual os personagens vão, um a um, desfiando suas histórias, na maioria traumáticas, em um ambiente de confinamento não previsto.

Outras dissecações de ordem racial poderiam ser feitas. Mas a verdade é que o filme acaba trazendo outro estilo de discussão racial, diferente daquele confrontativo e mais direto popularizado por Spike Lee,  e menos emotivo que o Green Book, onde mostra a força de Denzel Washington agora como produtor.

Todo elenco de muita expressão, com destaque para Viola Davis, surpreendente em sua transformação, mas com sua típica intensidade, e Chadwick, em sua obra de despedida que deve lhe render o Oscar, mas também com belíssimo e experiente elenco de apoio.

A Voz Suprema do Blues é incômoda, teatral, narrativa, claustrofóbica e intimista, e acima de tudo uma bela obra. Ela evidencia um gradual, ainda que tardio e não expressivo, aumento da representatividade negra no cinema e na possibilidade do Oscar, e uma consolidação da Netflix na vertente dramática com o respectivo reconhecimento plural da academia nas suas obras.